Como sugestão de leitura sobre um tema atual, indico o texto de Leandro Beguoci: "O Rolezinho e a desumanização dos pobres", cuja a versão original e estendida está no site www.oene.com.br. Eis alguns recortes do artigo publicado em 14 de janeiro de 2014.
O rolezinho,
a reunião de jovens e adolescentes em shoppings que nasceu na periferia de São
Paulo e já se espalhou por outras partes do país, virou o assunto do verão
deste 2014 de eleições e Copa. Um arrastão de palavras de ordem, à direita e à
esquerda, tomou o debate e colonizou as discussões com conceitos confusos, fora
de lugar. De repente, festas de funk ostentação viraram manifestações de
marxistas culturais contra a civilização ocidental e as reações a elas, vindas
de gente tão pobre quanto os jovens, uma prova irrefutável do apartheid brasileiro.
De fato, as
reuniões de lazer e a reação a elas foram contaminadas pelo debate político que
acontece nas áreas de classe média e classe média alta. Elas foram
simplificadas, estereotipadas. O debate se reduz aos exageros, criando
adversários irreais e estereotipados: ou as pessoas são elitistas ou
comunistas. Mas o mundo real, bem, esse é bem mais complicado. E, no meio desse
debate maluco, os sujeitos do rolezinho foram desumanizados e se tornaram
categorias para defender posições no debate histérico que vem se desenhando
para este ano.
Ninguém ouve
ou sabe o que esses jovens pensam, mas praticamente todo mundo no Facebook, no
Twitter, em algumas colunas nos jornais e nas revistas sabe o que eles deveriam
pensar. Ninguém sabe qual a intenção que eles têm com esses eventos, mas, do
lado de cá do rio, todo mundo já tomou as decisões por eles. Pouca gente do
centro expandido já visitou o shopping Itaquera ou Campo Limpo, mas não faltam
pessoas que já decidiram que ou eles são nobres centros contra a barbárie
periférica ou símbolos poderosos da segregação à brasileira.
A reação das
pessoas que frequentam os shoppings das periferias aos rolezinhos não passa nem
pela tese de luta de classe, como algumas pessoas à esquerda vem dizendo, nem
pela resistência à concretização dos projetos malévolos dos marxistas culturais
para dominar o mundo, como algumas pessoas mais à direita vem enfatizando – e
vou lhes poupar dos links porque, afinal, o papel do Oene também é dizer o que
você não precisa ler. Os argumentos principais das pessoas mais à
esquerda é que os rolezinhos são uma manifestação política com o objetivo de
ocupar os espaços que são negados aos pobres pela sociedade de consumo. O
problema é que não há nenhuma bandeira ou sinal nesse sentido, como nota
Vinicius Torres Freire em um bom texto na Folha de S.Paulo.
Os rolezinhos
não vêm com faixas ou bandeiras. Não há crítica ao consumo, mas elogio às
marcas. Essas pessoas já frequentam os shoppings da periferia, onde os
rolezinhos acontecem, em grupos pequenos. É difícil ver reivindicação de espaço
em um espaço que elas já frequentam. E isso também complica os argumentos da baderna,
à direita. Não há crítica ao sistema. Apenas a vontade expressa em roupas de
marcas em participar ativamente dele. Os motivos, como mostram uma
convocação do rolezinho, são bem mais singelos.
O rolezinho não é uma questão simples, mas acho que podemos descartar
facilmente as teses extremadas da esquerda e da direita porque elas não
encontram nenhum respaldo da realidade. É difícil ver protesto político na
vontade de usar um Mizunão de mil num espaço da periferia da cidade que já é
frequentado, individualmente, por essas pessoas. E é ainda mais difícil ver
marxismo cultural no funk ostentação. É muito difícil taxar de elitismo uma
ação de pessoas da periferia contra pessoas da periferia.
Como, afinal, acusar um morador de Itaquera de elitismo contra o filho do seu
vizinho, também morador de Itaquera?
Existem
algumas chaves para tentar entender este processo. A primeira chave é etária. Jovens, sejam eles
de onde forem, vão sempre desafiar os pais, os adultos, quem quer que seja. Faça
um exame de consciência e pense no que você, do alto dos seus 16 anos,
aprontava por ai. Ou, como diz a página de outro evento do rolezinho.
Outra chave
de compreensão é a cadeia de preconceito e diferenciação – uma variante da
segunda chave. Os vendedores desses shoppings da periferia, tão pobres (ou não
suficientemente ricos) quantos os seus clientes que vão comprar os tênis caros com
dinheiro vivo, torcem o nariz para aquelas pessoas que são tão próximas – mas
de quem elas gostariam de manter distância. Algumas pesquisas mostram que
pessoas que moram no limite de uma favela, mas não no seu coração, querem
manter toda a distância possível das pessoas que moram nas áreas mais pobres
daquela comunidade. Um emprego, uma roupa, tudo é uma marca de progresso, de
ascensão, em áreas todas niveladas pela miséria, pelo esgoto a céu aberto, pela
falta de educação. Até a música pode virar uma ferramenta.
Quando tudo
isso chega ao lado de cá da ponte, é filtrado pelas lentes do debate político
histérico que tomou conta do país. Tudo parece virar apartheid ou comunismo,
direito à livre circulação ou defesa da propriedade privada. Todo mundo tem
certezas com base em quase nada. Os blogueiros de direita denunciam a
conspiração dos funkeiros contra a civilização ocidental. Os blogueiros de
esquerda veem apartheid das elites nos shoppings da periferia. Vira um festival
livre de loucura, um campeonato nacional de associação livre, em que cada lado
atribui um valor a esse encontro de lazer de acordo com a conjuntura política.
O fenômeno deixa de ser analisado em si, e passa a ser analisado para servir de
arma numa briga muito maior. Esses jovens de Itaquera, do Campo Limpo, de
Interlagos, são desumanizados e se tornam aríetes de uma luta da qual eles não
têm a menor ideia que estão participando. E as decisões da Justiça, difíceis de
entender, só mostram o tamanho do desconhecimento.
Não há razão
para idolatrar ou demonizar os rolezinhos. Talvez haja furtos, talvez haja
arrastões, e não há nada que a polícia possa fazer senão impedir que as pessoas
pobres que frequentem esses shoppings sejam roubadas ou furtadas. Mas também
não faz nenhum sentido impedir que essas pessoas entrem em shoppings pelo
simples fato de usarem um boné de aba reta ou um tênis cheio de cores. Os
rolezinhos são o que são. E merecem estudos, debates e reflexões melhores do
que vem recebendo até agora.
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Como diria o árbitro: a regra é clara/Crédito: Flickr/Funk Ostentação SP |